domingo, 10 de julho de 2011

A tempestade no Oceano Glacial Ártico e o Sol da Meia-Noite


Francisco Souto Neto na Revista INFORME MAGAZINE nº 4 – Dezembro 2001 a Fevereiro 2002 (p. 26). Diretor e editor Nilton Romanowski

Capa




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Página 26



A TEMPESTADE NO OCEANO GLACIAL ÁRTICO
E O SOL DA MEIA-NOITE

Francisco Souto Neto

            Era junho de 1995: na companhia do amigo Rubens Faria Gonçalves, fiz um cruzeiro de 14 dias a bordo do Costa Allegra, com início e término em Amsterdã, que teve como maiores atrações o remoto Cabo Norte, na Noruega, e a vulcânica Islândia.

            Na madrugada de sexto dia de navegação contornamos o Cabo Norte e começamos a rumar para o próximo destino, a cidade islandesa de Akureyri. O percurso do Cabo Norte – que é o ponto extremo Norte do continente europeu – à Islândia, duraria dois dias de navegação nas águas geladas do Oceano Glacial Ártico. Embora estivéssemos no verão do Hemisfério Norte, naquela região do mundo a temperatura máxima, alcançada no auge do verão, raramente ultrapassa os dez graus centígrados. Ali, dentro do Círculo Polar Ártico, é onde ocorre o maravilhoso fenômeno do sol da meia-noite: o astro-rei não se põe, permanecendo acima da linha do horizonte durante as 24 horas do dia.

A tempestade

            Se alguém, em alguma ocasião, tiver a curiosidade e os meios para pesquisar o diário de bordo do capitão do Costa Allegra sobre os eventos ocorridos nos dias 10 e 11 de junho de 1995, atestará que no meu relato adiante não existe qualquer exagero. A verdade é que o navio esteve muito próximo a um naufrágio.



            Embora já tivéssemos vislumbrado no Cabo Norte um tímido sol da meia-noite descobrindo-se e cobrindo-se de nuvens persistentes, quando começávamos a travessia rumo à Islândia o mar começou a ficar agitado, e uma espessa neblina envolveu a nave. Pela manhã do dia 10 a neblina transformara-se em forte chuva. Na hora do almoço, percebemos que os poderosos estabilizadores do navio não conseguiam impedir o crescente balanço. Começava a tempestade. Os próprios garçons equilibravam os pratos com dificuldade, com as pernas teimando em não obedecer ao caminho certo. Interrompemos o almoço porque começávamos a enjoar, e dirigimo-nos à nossa cabine. Ao sairmos do restaurante, assistimos ao constrangimento de uma passageira que passou cambaleante por nós. Sem poder evitar o súbito desastre, ela curvou o próprio corpo num doloroso gemido e devolveu o almoço sobre o tapete turquesa.
            A tempestade aumentou, transformando o Costa Allegra numa gigantesca gangorra. Deitamo-nos em nossas respectivas camas, quando o navio começou a produzir imensos estrondos parecidos com explosões. É que ele era elevado pela fúria das ondas, ficava com a proa no ar e, ao descer com toda força, batia violentamente contra o mar encrespado.
            Ocupávamos a suíte 7004, a primeira da proa que, à altura de sete andares do nível do oceano, era dotada de uma sacada particular. Pois quando o navio despencava furiosamente naquele movimento de pêndulo, as águas do mar varriam a sacada, “lavando” a porta de vidro e as três grandes janelas. A cadeiras espreguiçadeiras desmontaram-se. Quando a proa subia, eu observava que meu amigo parecia afundar no colchão; quando baixava, os lençóis davam a impressão de querer inflar como uma bolha. Eu me agarrava com força às bordas da cama, para não ser atirado ao solo. Dentro do frigobar quebraram-se uma garrafa e algumas taças. O televisor, que era parafusado sobre uma base móvel em forma de círculo, teve os fios arrancados pela violência dos movimentos e ficou girando como que tomado por poltergeists. A embarcação jogava para todos os lados e não uniformemente como uma gangorra. Tive a sensação de estar sendo liquidificado. Numa das ocasiões em que me levantei para ir vomitar no banheiro, o movimento do navio atirou-me através da cabine. Senti-me como se fosse “catapultado”: derrubei a mesa de centro da nossa saleta e caí sobre o sofá, donde engatinhei com dificuldade em direção ao banheiro.
            Curiosamente, não senti medo nem por um segundo, talvez porque o enjôo era tão intenso que anestesiou todas as outras sensações. Porém soubemos depois que muitos passageiros acorreram aos salões com seus salva-vidas, temendo por um naufrágio. Até a experiente tripulação enjoou.
            Somente cerca de vinte horas após o início do pesadelo, a tempestade amainou. Meu amigo, abatido, disse-me: “Quando contarmos o que aconteceu, pensarão que exageramos”. Mas a realidade foi muito mais extraordinária do que poderia conceber a imaginação.

Sol da meia-noite

            Estávamos ainda distantes do final do cruzeiro, mas na noite de 11 de junho, que seria a última dentro do Círculo Polar Ártico, houve a ceia de gala do capitão. Com os músculos e pulmões doloridos, jantamos moderadamente, como se estivéssemos convalescentes de uma cirurgia.



            O mar tornou-se plácido como um espelho, e o céu mostrou-se sem nuvens. Tivemos um maravilhoso sol à meia-noite, com o astro-rei brilhando como ouro acima do horizonte. Do convés, apesar do frio, as senhoras idosas olhavam placidamente ao espetáculo, com as pedrarias e os brilhos dos seus vestidos longos ao vento, refletindo o dourado daquele estranho e magnífico céu que não anoitece. Todos perdiam-se na contemplação ao sol, como querendo esquecer os horrores vividos há tão poucas horas...
            Vimos o capitão passeando pelo tombadilho e notamos que ele era olhado por todos com certa admiração. Não restavam dúvidas de que, ao comandar com segurança o navio no meio da tempestade, ele evitou que nos transformássemos numa trágica notícia...
            Aproximávamo-nos da Islândia. Agora tudo era paz e beleza outra vez.

Ilustrações: Imagem 1 – Num dos salões do Costa Allegra, Souto Neto aponta para um sugestivo painel de decoração, que mais parecia um presságio. Foto Rubens Gonçalves. Imagem 2 – No convés do navio, Rubens Faria Gonçalves banhado pelo sol da meia-noite. Foto Souto Neto.

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