terça-feira, 12 de julho de 2011

Le Mont-Saint-Michel: a cidadela medieval, marés brutais e areias movediças

Arte e Memórias de Viagens

Francisco Souto Neto na Revista MARY IN FOCO nº 14 – Janeiro 2008 (p. 44-45), de Mary Schaffer e Marco Antônio Felipak

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LE MONT-SAINT-MICHEL: A CIDADELA MEDIEVAL, MARÉS BRUTAIS E AREIAS MOVEDIÇAS

Francisco Souto Neto (*)


      Imagine um lugar no mundo que surpreenda tanto pela história remota, quanto pelos fenômenos naturais que o envolvam. Imagine uma ilha, próxima ao continente, onde o mar, na maré vazante, afaste-se por mais de dez quilômetros, expondo perigosas areias movediças. E que, na montante, o mar retorne na velocidade de um cavalo a galope. Como não bastasse, pense nessa ilha revestida por encantadora cidadela medieval coroada por uma abadia cuja torre se eleve a cerca de 150 metros acima do nível do mar, dando ao conjunto de aspecto piramidal uma visão de assombrosa beleza...

      Pois esse lugar existe, na Normandia, ao norte da França. Trata-se de Le Mont-Saint-Michel, cognominado “A Maravilha do Ocidente”. Estive lá com meu amigo Rubens Faria Gonçalves. Durante quatro dias hospedamo-nos no Hotel Du Guesclin, um prédio de centenas de anos, donde apreciamos as maiores marés do planeta.

Marés brutais e areias movediças

      No mês de junho as marés atingem seu ápice. Na vazante, o mar afasta-se a perder de vista, deixando expostas as temíveis areias movediças. Na montante, retorna “com a velocidade de um cavalo a galope”, 30 quilômetros horários, conforme se registrava já há séculos. Por isso, é proibido nadar na maré alta e andar pelas areias na baixa. Por duas vezes ao dia, pode-se assistir ao fascinante fenômeno do retorno do mar, que chega ruidosamente, provocando rodamoinhos e fazendo as águas de um córrego ali existente correrem ao contrário. A maré cheia costuma trazer animais marinhos costumeiramente incomuns. Tivemos a oportunidade de observar uma foca que chegou nas ondas. Ela arrastou-se até à margem e ficou tomando um pouco de sol, formando ao redor de si um espesso anel de turistas. Em seguida retornou espontaneamente ao mar e desapareceu nas ondas.

      A diferença da altura entre a montante e a vazante pode chegar a 15 metros. Durante a maré baixa, é permitido caminhar pelas areias, porém, desde que sob a supervisão de um guia profissional do próprio Le Mont, que sabe identificar e evitar as movediças. Andar sobre tais areias perigosas é uma experiência inesquecível porque elas são escorregadias como sabão. Cada passo tem que ser trocado lentamente, com os pés tateando cuidadosamente a cada pegada.

      No final do século XIX a ilha foi unida ao continente por uma passarela artificial, conhecida como La Digue. Mesmo durante as marés mais altas do ano, La Digue não é encoberta pelas águas, o que proporciona ao Mont-Saint-Michel um contato permanente com a terra firme e permite que veículos se aproximem até à entrada da cidadela.

A história da cidadela

      Ainda mais fascinantes do que as marés e as areias movediças, são a própria cidadela medieval e a imensa abadia.

      Segundo a lenda, São Miguel apareceu em sonhos ao abade Aubert, pedindo-lhe que construísse uma igreja no alto da ilha então chamada de Mont-Tombe (Túmulo no Monte). O Mont-Saint-Michel, como passou a ser conhecido, começou como um oratório no ano de 708, portanto, há justos 1300 anos. Em 1017 iniciou-se a construção da igreja da abadia. No início do século XIII foi acrescentado o mosteiro que passou a ser conhecido como “La Merveille” (“O Milagre”). Na Idade Média, a ilha já estava coberta por uma cidadela protegida pelas muralhas que subsistem intactas.

       Ônibus e automóveis podem aproximar-se através de La Digue, mas só até aos portões da cidadela, que é aberta apenas para os pedestres. Sua rua principal chama-se “Grande Rue”, que leva até à abadia. Cortada por ruelas e becos intercomunicáveis, é um caminho íngreme, trilhado por peregrinos desde o século XII,  hoje cheio de lojas e alguns hotéis.

      A abadia, por sua vez, é uma obra-prima gótica. Chamados de “moquelots”, os peregrinos viajavam ao Monte para cultuar Saint-Michel (São Miguel), e o mosteiro era um centro de instrução na Idade Média. Após a Revolução Francesa, a abadia virou prisão. Hoje é um monumento nacional que atrai multidões de turistas.

      Os visitantes, em sua maciça maioria, chegam em excursões de ônibus e passam só algumas horas, ou alguns instantes, visitando as atrações do Monte, quase sempre ignorando as imensas marés. Durante o dia é preciso espremer-se entre esses turistas que, quase corpo-a-corpo, disputam os caminhos, lotam a Grande Rue e entopem as lojas. Muitos turistas viajam com seus cães, que podem entrar na cidadela, mas têm o ingresso proibido na abadia.

      Porém à noite, o silêncio cai sobre o Monte, principalmente no meio da semana, quando os hotéis não abriguam mais do que uns pouquíssimos hóspedes. Os turistas desaparecem como que por encanto, porque as excursões de que participam são muito rápidas e logo retiram-se nos seus apressados ônibus em busca de outros destinos.

      Os cães se vão com os turistas, embora alguns sejam moradores da cidadela, como seus donos. Despontam então os outros animais: primeiro os passarinhos liquidando os farelos dos comestíveis derrubados durante o dia pelos turistas. Após o anoitecer, o que ocorre por volta das 22 horas, surgem os verdadeiros donos do lugar: os gatos. Inúmeros, eles entram nos latões de lixo revirando tudo o que encontram e andam em atitude de caça, talvez procurando por ratos e insetos.

      Deter-se por alguns dias no Le Mont-Saint-Michel para apreciar o conjunto arquitetônico e os fenômenos naturais que ocorrem em seu entorno, é uma das mais belas experiências de toda a nossa existência.

Legendas. Foto 1 – O Mont-Saint-Michel durante a maré alta, ligado ao continente por La Digue. Foto 2 – O Monte na maré vazante expõe traiçoeiras areias movediças. Foto 3 – O Monte visto do continente, com Rubens Faria Gonçalves em primeiro plano, e ovelhas.    

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