quarta-feira, 13 de julho de 2011

Atribulações, suspense e beleza: viagem à Rússia

Arte e Memórias de Viagens

Francisco Souto Neto na Revista MARY IN FOCO nº 17 – Abril 2008 (p. 64-65), de Mary Schaffer e Marco Antônio Felipak

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ATRIBULAÇÕES, SUSPENSE E BELEZA: VIAGEM À RÚSSIA

Francisco Souto Neto

      Estive na Rússia uma só vez, há muito tempo, em 1993. O Muro de Berlim caíra há apenas quatro anos, marcando o fim da União Soviética. As palavras da moda na política, em todo mundo, eram glasnost (“transparência” em russo, ou “abertura política”) e perestroika (reconstrução). A Rússia estava dando os primeiros passos rumo à democracia, e fazia isso com extrema desconfiança. Foi sob esse clima que eu e meu amigo Rubens Faria Gonçalves nos decidimos a fazer um cruzeiro pelo Mar Báltico, que partia de Amsterdã, visitando em doze dias as mais importantes cidades nórdicas, com uma parada por dois dias em São Petersburgo, a antiga Leningrado.

     Países que costumam exigir vistos de entrada, ordinariamente não o requerem para os turistas que desembarcam durante as atracagens de embarcações internacionais em seus portos. Portanto, na parada do navio em São Petersburgo, vistos de entrada estariam dispensados, porém apenas para todos os que integrassem as excursões oferecidas. Por outro lado, essas pessoas estariam proibidas de andar livremente pela cidade.

     Eu e meu companheiro de viagem iríamos participar de algumas excursões, mas também desejávamos andar à vontade pela urbe. Para isso, independentes, resolvemos solicitar vistos de entrada.

     Certa tarde recebi um telefonema. A pessoa identificou-se: “Aqui... cônsul drússia”. Pensei que se tratasse de uma propaganda qualquer da marca Cônsul. Pedi, embora já quase desligando: “Por favor, fale mais claro: é sobre a Cônsul?” “...de Rússia”, respondeu a voz com melhor clareza. Compreendi na hora: era o Cônsul da Rússia, falando com pesado sotaque. Ele queria saber por que motivo eu desejava entrar no seu país. “Ora, senhor, desejo passear pela Rússia”. E ele: “O que quer ver em St. Petersburg”?

     Naquele momento, um pouco aturdido, compreendi que estava sendo interrogado, e disto dependeria a concessão do visto de entrada naquele país. Informei então ao Sr. Cônsul todos os lugares que pretendia visitar, mas que também gostaria de andar pelas ruas, vendo o povo e a arquitetura da cidade. Muito amável, o Sr. Cônsul agradeceu e desligou.

     Na mesma tarde, meu amigo Rubens Faria Gonçalves estava dando uma palestra no SENAC, onde trabalhava, e foi interrompido pela secretária: “Desculpe, mas o Cônsul da Rússia está ao telefone e diz que é urgente”. E repetiu-se com ele o mesmo que comigo ocorrera.

     A partir dali, permanecemos durante semanas à espera dos passaportes, que não voltavam. Após muita tensão, contando com a permanente insistência da nossa agente de turismo, os passaportes chegaram! Já estávamos a apenas quatro dias do nosso embarque. Foi então que notamos que a permissão para o ingresso ao país, viera com datas erradas! Em vez de 10 e 11 de julho, o Cônsul anotara 10 e 11 de junho.

     Como o Cônsul atendia a dois consulados, São Paulo e Rio de Janeiro, tivemos que descobrir onde e quando ele estaria nos próximos dois dias. Encaminhamos nosso passaporte de volta ao Rio, por intermédio de um serviço especial de malotes, cientes de que se não recebêssemos nossos documentos de volta em tempo hábil, não poderíamos sequer embarcar para a Europa.

     Através de permanente contato com funcionários de ambos os consulados, acompanhamos, hora a hora, passo a passo, o itinerário dos passaportes e a agenda do Cônsul. Os oficiais de chancelaria russos, alarmados “em alerta vermelho” para a gravidade da situação, conseguiram fazer com que o Cônsul acertasse os vistos, e nós recebemos nossos passaportes de volta... na véspera do embarque. Tínhamos passado, sem dúvida, pelo momento mais estressante de todas as viagens que já empreendemos.

     No dia certo embarcamos em Amsterdã no magnífico Song of Norway e iniciamos o cruzeiro pelas águas do Atlântico. Atravessando o Canal de Kiel, que corta o norte da Alemanha, o navio alcançou o Mar Báltico.

     A estada em São Petersbourg revelou-se fascinante. No primeiro dia, o ponto alto das excursões foi ao magnífico Museu Hermitage. No segundo, fizemos um passeio ao palácio Tsarskoe Sello, na localidade de Pushkin, antiga residência de verão de Catarina, a Grande. 

     O palácio de Pushkin, com a quilométrica fachada branca e azul e detalhes dourados, abriga extraordinárias coleções de pintura e mobiliário de época. Foi a última residência do czar Nicolau II, onde ele vivia com a imperatriz Alexandra, quatro filhas – a menor das quais a famosa princesa Anastácia – e o caçula da família, o príncipe herdeiro Aleksei, que era doente e frágil.

     Naquele corredores recobertos de ouro ocorreram dramas universalmente conhecidos, e por eles circulava o místico Rasputin, exercendo influência sobre a imperatriz, porque ele conseguia controlar a doença de Aleksei, o pequeno czaréviche. Em 1917, ao estourar a Revolução Russa, a família imperial foi ali aprisionada e mandada para a Sibéria, onde seriam todos cruelmente assassinados a tiros e golpes de baioneta.

     Fomos ao aposento onde estava instalado o gabinete de trabalho do czar Nicolau II e vimos sua escrivaninha, a cadeira onde se sentava, e seus objetos pessoais. Discretamente corri os dedos pelos móveis e detalhes dourados das paredes, compadecido com o destino daqueles que lá residiram.

     Depois, de volta a São Pertersburgo, andamos pelas ruas centrais da urbe, apreciando a arquitetura austera e entrando nos pátios internos dos imensos – e pobres – edifícios residenciais. Notamos a total ausência de vitrines na cidade, herança do regime soviético. Ingressamos nas deslumbrantes igrejas. Vimos senhoras idosas trabalhando em limpar os trilhos dos bondes. Encontramos artistas às margens do Rio Neva, com seus cavaletes e telas, pintando a paisagem, e “conversamos” com um deles, um senhor idoso que falava unicamente o idioma russo, do qual absolutamente nada entendíamos. Entretanto, guardamos dele a linguagem universal do sorriso generoso de boas-vindas a seu país. Enfim, os passeios que fizemos a pé serviram para que retivéssemos em nossas memórias, para sempre, as lembranças de um povo simpático, alegre, gentil e atencioso, que naquele momento buscava por um futuro melhor.

     Afortunadamente, as trapalhadas do Cônsul não prejudicaram as nossas caminhadas pelas ruas do fascinante país.

Legendas: Foto 1 – A família imperial de Nicolau II. Foto 2 – Torre do Palácio Tsarskoe Sello na cidade de Pushkin. Foto 3 – Corredores dourados do Tsarkoe Sello.
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